Por que as violências contra crianças e adolescentes, em particular as de caráter sexual, permanecem sendo um dos maiores problemas sociais e de saúde pública que enfrentamos nas últimas décadas em todo o mundo? Há muitas maneiras de responder a esta pergunta, mas nenhum fator por si só será capaz de explicar todo este fenômeno, porque, em geral, ele possui várias causas, vários motivos e várias origens. Mas há algumas características em comum nos casos registrados. Uma delas é que tanto a incidência (casos novos) como a prevalência (número total de casos em um período de tempo) da violência e exploração sexual contra crianças e adolescentes apontam os homens como os principais autores (1). Para piorar, muitos desses homens são familiares (pais, padrastos, irmãos, primos, tios, avôs), têm alguma relação de proximidade (amigos, educadores, religiosos), ou são conhecidos (vizinhos, médicos, etc.) da vítima.
Uma das principais características do poder e do privilégio masculino é a “habilidade de não ser examinado, a falta de introspecção… tornando-se invisíveis sobre questões que são primariamente sobre nós [homens]”. Então, mais do que nunca, os homens precisam assumir que têm um papel decisivo no enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes.
Pensando nisso, ofereço algumas dicas práticas para homens que querem rever sua atuação nesse cenário e se tornarem mais proativos para melhor proteger as crianças.
1. Reconheçam que a violência é uma questão que deve ser abordada com muita seriedade pelos homens
Uma educação machista é a principal porta de entrada para a construção de ideias e valores violentos, como a dominação masculina, manifesta através do sentimento de posse, da objetificação e da subordinação feminina, do autoritarismo, de preconceitos e injustiças contra as mulheres, etc. Portanto, não basta que os homens apenas “apoiem” as mulheres que enfrentam a violência, mas que atuem diretamente entre eles mesmos para transformar uma das principais causas dessa violência: o machismo estrutural. É preciso que eles a) se reconheçam como os principais agentes de violência; b) repensem os paradigmas que fundamentam sua masculinidade; e c) proponham alternativas não-violentas para as relações que estabelecem com as mulheres, sejam elas meninas, adolescente ou adultas, e até entre eles mesmos.
2. Desenvolvam o caráter dos filhos homens (e demais meninos de seu convívio)
É de suma importância que pais e outros homens adultos de referência ensinem sempre aos meninos a respeitar e a proteger as meninas (o que é diferente de controlá-las!). Isso pode ser feito de diversas maneiras. A primeira delas é incutir nos meninos o valor da equidade entre homens e mulheres – que é a busca por justiça, direitos e oportunidades iguais, independentemente do gênero–, e que por este motivo elas não devem ser tratadas como objetos, ou seres de segunda categoria. A partir dessa noção, os homens devem educar as crianças, sobretudo os meninos, para valorizar as mulheres como pessoas, reconhecer sua dignidade, respeitar seus direitos, protegê-las e oferecer apoio a elas quando forem vítimas de qualquer tipo de violência.
3. Ensinem as crianças sobre seus direitos individuais
A noção de direitos humanos é construída bem cedo na vida de uma criança através do modo como ela é vista em sua família, do tipo de suporte que recebe dentro e fora de seu lar que lhe garanta sua segurança e bem-estar, e das condições que são colocadas ao seu dispor pela sociedade em geral que assegurem um desenvolvimento físico, emocional e espiritual saudável. Nesse sentido, é necessário e possível ensiná-las sobre seus direitos individuais (direito à vida, à dignidade, à educação, a crescerem livre de violência, etc.). Em contrapartida, elas também aprenderão a respeitar os direitos das demais pessoas, sejam crianças, jovens ou adultos, homens ou mulheres, bem como os limites impostos por estes direitos.
4. Ensinem as crianças a se protegerem
Antes de qualquer coisa, é preciso dizer que, com isto, não estamos colocando a responsabilidade pela proteção somente nas crianças. No entanto, elas podem se tornar agentes de sua própria proteção ao aprenderem recursos muito úteis para lidar com situações de violência, como por exemplo, ter uma compreensão adequada e afirmativa sobre seu próprio corpo, sabendo diferenciar as partes íntimas das demais partes, conhecimento fundamental para que possam impor limites aos adultos. E mesmo se isso ocorrer, ela saberá que foi errado, que não teve culpa, e que deverá contar a alguém de confiança. Em contrapartida, a criança que nunca recebeu essas informações, ou que as obteve de forma distorcida ou insuficiente, está mais vulnerável às tentativas de abuso. No entanto, ela somente poderá adquirir essas habilidades de proteção se contar com homens de referência (pai, educadores, familiares) que participam ativamente na educação de uma sexualidade emancipadora e protetiva.
5. Falem abertamente sobre a existência da violência sexual com as meninas
Todos sabemos que a sexualidade, por si só, já é um tema bastante amplo e complexo e, para muitas pessoas, repleto de tabus e limitações. Saber lidar com cada um destes aspectos é crucial para transmitir às crianças e adolescentes uma ideia positiva sobre si mesmas. É preciso, portanto, que os homens estejam dispostos a enfrentar suas próprias limitações – sejam de vocabulário, conteúdo, ou mesmo de comunicação –, para que estabeleçam um canal livre entre as crianças, através do qual elas possam questionar, tirar dúvidas, falar de seus sentimentos e preocupações, e encontrar amparo quando passarem por situações difíceis em relação à sua sexualidade, sem serem julgadas ou ameaçadas. Há, infelizmente, ainda aqueles que pensam que a responsabilidade de falar sobre sexualidade com a filhas é somente da companheira, professora ou outra mulher adulta, por uma afinidade “natural” entre elas. No entanto, é importante que as meninas convivam com exemplos saudáveis, responsáveis e protetivos de masculinidade, para que tenham condições de reconhecer homens e relacionamentos abusivos, caso passem por esta experiência. E lembrem-se: a vítima de violência sexual nunca tem culpa! Portanto, é preciso ser acolhedor e sensível.
6. Estabeleçam vínculos seguros saudáveis com as crianças
Quando a criança constrói uma relação de confiança com um adulto é mais provável que ela conte com sua ajuda para lidar com alguma situação de violência que venha a sofrer. O sentimento de segurança gerado pelo amor e atenção recebidos de uma pessoa de confiança, em particular alguém da família, é um fator muito importante na revelação de casos de abuso sexual e busca por ajuda. Mas a construção desse tipo de relação passa, necessariamente, por uma sensibilidade dos homens em reconhecerem que podem ser, ao mesmo tempo, firmes e gentis, assertivos e não-violentos, presentes e não controladores. Relações saudáveis, marcadas por vínculos seguros e duradouros, não são construídas através de imposições e autoritarismos, mas de um equilíbrio entre autoridade e ternura.
7. Cuidem de sua saúde emocional
Conhecer-se a si mesmo é um princípio milenar. Quando conhecemos as origens de nossos medos, frustrações, raivas e descontroles, temos melhores condições de lidar com as pressões cotidianas e os sentimentos e ações por elas gerados, sem necessariamente ferir aqueles que estão ao nosso redor. Ninguém está imune de cometer algum tipo de violência, principalmente contra seres tão vulneráveis como as crianças. A primeira coisa que as crianças aprendem com a violência que sofrem é que adultos também perdem o controle. Uma maneira bastante prática, mas nada simples, dos homens cuidarem de sua saúde emocional é questionarem os modelos de masculinidade que receberam (e continuam recebendo) durante toda sua vida, sobretudo aqueles que retratam o homem como durão, que não pode demonstrar fraqueza, que deve estar sempre firme e de pé. Perceber-se vulnerável e buscar ajuda não deve ser visto como uma fraqueza, como muitos de nós homens fomos ensinados, mas como uma atitude de coragem e amor próprio.
Reconheço que cada homem será mais ou menos capaz de responder a estas demandas a partir das capacidades e habilidades que tiverem construído ao longo de suas vidas. Não se pode esperar que uma pessoa trate bem o outro, em especial os filhos, simplesmente porque é o que a sociedade espera de uma família ideal. Os números alarmantes sobre as violências sexuais contra crianças e adolescentes, sobretudo no ambiente doméstico, estão aí para provar o contrário. Se pais e mães, bem como demais adultos de referência não tiverem recebido uma quantidade suficiente de amor, atenção e cuidados – recursos fundamentais para criar vínculos saudáveis e duradouros –, não serão capazes de oferecê-los às crianças com quem convivem. Em particular, os homens podem criar redes de apoio mútuo e reeducação social, que permitem gerar espaços de reflexão, crítica e aperfeiçoamento de suas capacidades de cuidado e proteção.
Alexandre Gonçalves
Educador Social e Capacitador do Claves Brasil (programa de prevenção das violências contra crianças e adolescentes), Pastor da Igreja da Irmandade e facilitador do Eles & Elos (espaço de acolhida, diálogo e revisão de paradigmas sobre masculinidades).
Notas: 1. Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 2011 e 2017 o número homens autores de violência sexual contra crianças e adolescentes era de 88%. No mesmo período, o Disque 100 apontou o número de 63%.